O filosofo da suspeita Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) emite
seu parecer sobre saúde:
A objeção, o desvio, a
desconfiança alegre, a vontade de troçar são sinais de saúde:
tudo o que é absoluto pertence à patologia.
Essa
percepção nietzscheana faz-me lembrar mais dum conceito do que duma
categoria. Sempre é válido lembrar de que um conceito trata-se, do
que se trata, ou, do que é algo [definição], já categoria, como
diria o professor Ernesto von Rückert, é o tipo de realidade que se
enquadra algo que foi ou pode ser definido.
Incorro
no risco de soar delirante, mas é preciso entender que a saúde,
como a entendemos nesse universo ocidental, tem hoje (2019) uma
definição [geralmente utilizamos a definição da WHO], mas
torna-se ao mesmo tempo uma categoria quando esse conceito
metamorfoseia-se de 1977 [Boorse] para a definição que utilizamos
nos dias atuais. Da simples ausência de doença ou enfermidade
[Boorse] para um estado de completo bem-estar físico, mental e
social, não apenas a ausência de doença ou enfermidade
[Nordenfelt].
O
escritor maldito, para alguns, Eduardo Galeano certa feita escreveu:
A utopia está lá no
horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu
caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para
isso: para que eu não deixe de caminhar.
Nossa
utopia em saúde nos fez e faz caminhar. Digo utopia pois “ um
estado de completo bem-estar [...]” torna-se impossível de se
alcançar, mas nos move, e manter o mundo girando é algo
importantíssimo, mas ao conceituar ou categorizar de forma
equivocada a saúde, todo um sistema pode gerar ações falhas.
Se
não entendemos bem a saúde, como poderíamos entender seus
desdobramentos positivos ou negativos?
No séc.XVI havia diagnósticos
de doenças que existiam apenas na mente dos escravistas do sul dos
Estados Unidos da América, como a Drapetomia que classificava o
desejo de fuga do escravo como uma doença mental tratada com
açoites, para além de outras excrescências como a Disestesia
Etiópica também tratada com a chibata curativa do branco para
corrigir a falta de motivação da mercadoria negra para o trabalho.
Como
objeto-primo temos a vida, afinal mortos ou não-nascidos não
expressam saúde ou mesmo doença. O indivíduo vivo [infelizmente]
não é um ente isolado, mas também não nos compararemos aos
superorganismos dos coletivos de formigas, e como elementos dum
conjunto maior temos certas similaridades para o bem ou para o mal.
Exemplificando: a elevadíssima prevalência da dor
musculoesquelética no Brasil/mundo. Se a dor for considerada um
desdobramento ruim dum corpo vivo que já não cumpre a exigência
ditatorial do estado de completo bem-estar, podemos entender que os
sujeitos que estão nesse subconjunto não tem saúde. No caso no
Brasil temos a população
total do estado de São Paulo (44 846 530 de habitantes) somada a
População do estado do Rio de Janeiro (16 690 709 de habitantes)
[IBGE – 2016]. Pelo
menos
60 000 000 de habitantes no
Brasil sem saúde. Isso é possível? [não estamos levando em
consideração outros eventos que implicam na quebra da cláusula
única da saúde]
Há
possibilidades duma
vida livre de miséria,
vícios, iniquidade, discriminação, violência, opressão,
desigualdade
social
e guerra? Esses são essencialmente problemas de vida quotidiana.
Constatou-se
que a desigualdade na distribuição da
renda, por
exemplo,
é prejudicial como um todo e não somente para os menos favorecidos.
Ou seja, mais riqueza individual
não necessariamente pode ser traduzida como melhorias nas condições
de saúde dum
grupo mais abastado.
O que garantiria isso, em partes, seria uma distribuição de renda
mais igualitária, mas
ainda
sim
existiriam problemáticas, mais discretas naturalmente, que
impediriam as
pessoas de alcança
a saúde plena,
baseado no conceito da WHO.
Novos
debates científicos, afirmam
que cada definição de saúde deve conter
pelo menos 09
características para funcionar bem dentro do campo científico
clínico.
1.
A saúde deve estar além da ausência de doenças ou enfermidades e
dos parâmetros biofísicos para evitar o velho reducionismo bem
estabelecido da medicina;
2.
A saúde deve ser conceituada como uma capacidade, um conjunto de
capacidades;
3.
A saúde deve ser vista como um processo contínuo, iterativo e
dinâmico, e não como um estado que alcance;
4.
A saúde deve ser potencialmente alcançável para todos na vida
real, em todas as circunstâncias, em todas as idades,
independentemente do status cultural, socioeconômico, racial ou
religioso, para evitar tornar-se uma utopia;
5.
A saúde deve incluir tanto mal-estar quanto bem-estar. A inclusão
do mal-estar em uma definição de saúde é estratégica para
contrastar a medicalização da sociedade e reduzir o viés cultural
para considerar a saúde como uma condição ideal: permite ter
expectativas realistas sobre ela e ser saudável mesmo quando se está
lidando com eventos negativos;
6.
A saúde deve superar as abordagens que visem o individual, porque
ela não pode mais ser considerada uma propriedade de um indivíduo
abstrato independente dum contexto vivo, mas, ao mesmo tempo, a saúde
não pode ser reduzida somente a um resultado de determinantes
sociais;
7.
A saúde deve ser independente do um discurso moral e ético, mesmo
que seja inevitável que cada definição de saúde seja uma
expressão implícita de determinadas normas socioculturais;
8.
A saúde deve basear-se nas prioridades, valores, necessidades,
aspirações e objetivos de uma pessoa . Rejeitando uma perspectiva
nomotética falaciosa (a
crença de resolver efetivamente um problema ao nomeá-lo)
que visa encontrar leis gerais que expliquem fenômenos de
saúde para todos os indivíduos;
9.
A saúde deve ser operacional e mensurável por processos claros,
concretos e definidos para se tornar um conceito útil em situações
reais.
Baseado
nessas 09 premissas, no ano de 2018 Fabio Leonardi define que “em
termos mais operacionais, a saúde pode ser conceituada como a
capacidade de reagir a todos os tipos de eventos ambientais, tendo as
respostas emocionais, cognitivas e comportamentais desejadas e
evitando aquelas indesejáveis”.
Antes
de pensar em dor, pensemos em saúde e façamos uma análise do que
rumo essa prosa anda tomando e sejamos críticos quanto a nossas
ações.
Igor
Caio Santana de Andrade
Fisioterapeuta
e joalheiro amador
(20/01/19)
Postado originalmente em:<https://dorecoluna.com/2019/01/22/estamos-realmente-falando-em-saude/>
Foto:
Det sjunde inseglet (O Sétimo Selo] é um filme sueco de 1956, do
gênero drama, escrito e dirigido por Ingmar Bergman.
Sinopse:
após dez anos, um cavaleiro retorna das Cruzadas e encontra o país
devastado pela peste negra. Sua fé em Deus é sensivelmente abalada
e enquanto reflete sobre o significado da vida, a Morte surge à sua
frente querendo levá-lo, pois chegou sua hora. Objetivando ganhar
tempo, convida-a para um jogo de xadrez que decidirá se ele parte
com a Morte ou não. Tudo depende da sua vitória no jogo e a Morte
concorda com o desafio, já que não perde nunca.