terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Estamos realmente falando em Saúde?


O filosofo da suspeita Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) emite seu parecer sobre saúde:

A objeção, o desvio, a desconfiança alegre, a vontade de troçar são sinais de saúde: tudo o que é absoluto pertence à patologia.

Essa percepção nietzscheana faz-me lembrar mais dum conceito do que duma categoria. Sempre é válido lembrar de que um conceito trata-se, do que se trata, ou, do que é algo [definição], já categoria, como diria o professor Ernesto von Rückert, é o tipo de realidade que se enquadra algo que foi ou pode ser definido.

Incorro no risco de soar delirante, mas é preciso entender que a saúde, como a entendemos nesse universo ocidental, tem hoje (2019) uma definição [geralmente utilizamos a definição da WHO], mas torna-se ao mesmo tempo uma categoria quando esse conceito metamorfoseia-se de 1977 [Boorse] para a definição que utilizamos nos dias atuais. Da simples ausência de doença ou enfermidade [Boorse] para um estado de completo bem-estar físico, mental e social, não apenas a ausência de doença ou enfermidade [Nordenfelt].

O escritor maldito, para alguns, Eduardo Galeano certa feita escreveu:

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

Nossa utopia em saúde nos fez e faz caminhar. Digo utopia pois “ um estado de completo bem-estar [...]” torna-se impossível de se alcançar, mas nos move, e manter o mundo girando é algo importantíssimo, mas ao conceituar ou categorizar de forma equivocada a saúde, todo um sistema pode gerar ações falhas.

Se não entendemos bem a saúde, como poderíamos entender seus desdobramentos positivos ou negativos?
No séc.XVI havia diagnósticos de doenças que existiam apenas na mente dos escravistas do sul dos Estados Unidos da América, como a Drapetomia que classificava o desejo de fuga do escravo como uma doença mental tratada com açoites, para além de outras excrescências como a Disestesia Etiópica também tratada com a chibata curativa do branco para corrigir a falta de motivação da mercadoria negra para o trabalho.

Como objeto-primo temos a vida, afinal mortos ou não-nascidos não expressam saúde ou mesmo doença. O indivíduo vivo [infelizmente] não é um ente isolado, mas também não nos compararemos aos superorganismos dos coletivos de formigas, e como elementos dum conjunto maior temos certas similaridades para o bem ou para o mal. Exemplificando: a elevadíssima prevalência da dor musculoesquelética no Brasil/mundo. Se a dor for considerada um desdobramento ruim dum corpo vivo que já não cumpre a exigência ditatorial do estado de completo bem-estar, podemos entender que os sujeitos que estão nesse subconjunto não tem saúde. No caso no Brasil temos a população total do estado de São Paulo (44 846 530 de habitantes) somada a População do estado do Rio de Janeiro (16 690 709 de habitantes) [IBGE – 2016]. Pelo menos 60 000 000 de habitantes no Brasil sem saúde. Isso é possível? [não estamos levando em consideração outros eventos que implicam na quebra da cláusula única da saúde]

Há possibilidades duma vida livre de miséria, vícios, iniquidade, discriminação, violência, opressão, desigualdade social e guerra? Esses são essencialmente problemas de vida quotidiana.
Constatou-se que a desigualdade na distribuição da renda, por exemplo, é prejudicial como um todo e não somente para os menos favorecidos. Ou seja, mais riqueza individual não necessariamente pode ser traduzida como melhorias nas condições de saúde dum grupo mais abastado. O que garantiria isso, em partes, seria uma distribuição de renda mais igualitária, mas ainda sim existiriam problemáticas, mais discretas naturalmente, que impediriam as pessoas de alcança a saúde plena, baseado no conceito da WHO.

Novos debates científicos, afirmam que cada definição de saúde deve conter pelo menos 09 características para funcionar bem dentro do campo científico clínico.
1. A saúde deve estar além da ausência de doenças ou enfermidades e dos parâmetros biofísicos para evitar o velho reducionismo bem estabelecido da medicina;
2. A saúde deve ser conceituada como uma capacidade, um conjunto de capacidades;
3. A saúde deve ser vista como um processo contínuo, iterativo e dinâmico, e não como um estado que alcance;
4. A saúde deve ser potencialmente alcançável para todos na vida real, em todas as circunstâncias, em todas as idades, independentemente do status cultural, socioeconômico, racial ou religioso, para evitar tornar-se uma utopia;
5. A saúde deve incluir tanto mal-estar quanto bem-estar. A inclusão do mal-estar em uma definição de saúde é estratégica para contrastar a medicalização da sociedade e reduzir o viés cultural para considerar a saúde como uma condição ideal: permite ter expectativas realistas sobre ela e ser saudável mesmo quando se está lidando com eventos negativos;
6. A saúde deve superar as abordagens que visem o individual, porque ela não pode mais ser considerada uma propriedade de um indivíduo abstrato independente dum contexto vivo, mas, ao mesmo tempo, a saúde não pode ser reduzida somente a um resultado de determinantes sociais;
7. A saúde deve ser independente do um discurso moral e ético, mesmo que seja inevitável que cada definição de saúde seja uma expressão implícita de determinadas normas socioculturais;
8. A saúde deve basear-se nas prioridades, valores, necessidades, aspirações e objetivos de uma pessoa . Rejeitando uma perspectiva nomotética falaciosa (a crença de resolver efetivamente um problema ao nomeá-lo) que visa encontrar leis gerais que expliquem fenômenos de saúde para todos os indivíduos;
9. A saúde deve ser operacional e mensurável por processos claros, concretos e definidos para se tornar um conceito útil em situações reais.

Baseado nessas 09 premissas, no ano de 2018 Fabio Leonardi define que “em termos mais operacionais, a saúde pode ser conceituada como a capacidade de reagir a todos os tipos de eventos ambientais, tendo as respostas emocionais, cognitivas e comportamentais desejadas e evitando aquelas indesejáveis”.

Antes de pensar em dor, pensemos em saúde e façamos uma análise do que rumo essa prosa anda tomando e sejamos críticos quanto a nossas ações.


Igor Caio Santana de Andrade
Fisioterapeuta e joalheiro amador
(20/01/19)
Postado originalmente em:<https://dorecoluna.com/2019/01/22/estamos-realmente-falando-em-saude/>
Foto: Det sjunde inseglet (O Sétimo Selo] é um filme sueco de 1956, do gênero drama, escrito e dirigido por Ingmar Bergman.
Sinopse: após dez anos, um cavaleiro retorna das Cruzadas e encontra o país devastado pela peste negra. Sua fé em Deus é sensivelmente abalada e enquanto reflete sobre o significado da vida, a Morte surge à sua frente querendo levá-lo, pois chegou sua hora. Objetivando ganhar tempo, convida-a para um jogo de xadrez que decidirá se ele parte com a Morte ou não. Tudo depende da sua vitória no jogo e a Morte concorda com o desafio, já que não perde nunca.